VIDA URBANA
'Somos herdeiros do modelo escravocrata e isso reflete, ainda, nos dias atuais'
Professora da UFPB e autora de livro que aborda construção da beleza negra no Brasil afirma que preconceito nunca deixou de existir.
Publicado em 28/06/2015 às 16:00 | Atualizado em 07/02/2024 às 15:12
Os conceitos de beleza, estabelecidos ao longo dos séculos, sempre priorizou as características do povo europeu, conforme a professora Amanda Braga, da Universidade Federal da Paraíba (UPFB). Segundo ela, cabelos lisos, pele e olhos claros são características valorizadas pela sociedade, que mostra preconceitos diante de uma pele mais escura e cabelos crespos.
No recém-lançado livro História da Beleza Negra do Brasil – discursos, corpos e práticas (Edufscar), a professora faz um resgate histórico sobre a formação do conceito de beleza e o discurso que envolve as questões raciais. Veja abaixo uma entrevista com ela:
Jornal da Paraíba: O que te levou a aprofundar os conhecimentos sobre a estética da mulher negra?
Amanda Braga: Na verdade, trata-se de uma pesquisa sobre os conceitos de beleza negra que emergem ao longo da história do Brasil. O ponto de partida foram as políticas afirmativas adotadas pelo Estado brasileiro a partir de 1996. foram elas (bem como tudo que delas adveio) que me fizeram escrever sobre o assunto. Anteriormente a 1996, havia no Brasil, políticas de integração, que visavam integrar o público negro socialmente. As políticas afirmativas, não por acaso também chamadas de políticas de identidade, estão interessadas em afirmar a identidade negra a partir de uma ótica positiva, cenário a partir do qual vão surgir, por exemplo, os salões de beleza étnicos, os cosméticos desenvolvidos especificamente para a pele negra, uma mídia impressa dedicada exclusivamente ao público, um maior interesse na moda e na cultura africana, etc. São todas essas questões, que colocam o corpo, bem como a estética negra no centro das grandes discussões, que me impelem, hoje, a escrever sobre uma História da Beleza Negra no Brasil, que poderia ser também uma história do corpo negro no Brasil.
Amanda diz que as atuais políticas de integração buscam afirmar a identidade negra a partir de uma ótica positiva. (Foto: Kleide Teixeira)
JP: É um tema difícil de ser estudado?
AB: Difícil porque complexo, mas apaixonante em igual medida.
JP: Seria correto dizer que nos dias atuais a sociedade está menos preconceituosa e consegue reconhecer a beleza negra?
AB: O que acontece é uma absorção dos signos da beleza negra pelo mercado, abrindo a possibilidade de afirmar uma estética que se torna cada vez mais visível, mais massificada, mais usual. Num cenário de políticas afirmativas, as esferas da mídia e da moda, bem como os discursos que tematizam muito fortemente a questão da diversidade, vão trabalhar na massificação de alguns desses signos: o turbante e o cabelo crespo em sua textura natural – usados não apenas por pessoas negras – são exemplos disso. São também sintomáticas as coleções inspiradas na estética negra.
JP: Como você, enquanto estudiosa do assunto, avalia o fato de que pessoas negras (algumas, claro) se classificam como morenas? Isso seria uma perda da identidade ou um medo de rejeição?
AB: Seria preciso entender, a princípio, a inversão que a nossa cultura propõe à imagem do mulato. Em franca oposição ao discurso advindo das teorias eugenistas do século XIX, segundo as quais a miscigenação deveria ser combatida enquanto principal responsável pela possível degeneração e pelo consequente extermínio da raça humana – de onde decorre, inclusive, o sentido filológico atribuído ao termo mulato: referente ao animal resultante do cruzamento entre tipos genéticos distintos e, portanto, incapaz de reproduzir-se, dada sua hibridez -, o que a cultura nacional fará é atribuir valor positivo ao mulato, ratificando uma dada glorificação da mulata como símbolo do que melhor poderia se concebido a partir da união de negros, brancos e índios.
JP: Por falar em avanço, como você avalia tanto preconceito e racismo nos dias de hoje? Ainda estamos presos no modelo escravocrata?
AB: Somos herdeiros do modelo escravocrata e isso reflete, ainda, nos dias atuais. Se quisermos um exemplo, basta olhar com algum cuidado para os anúncios (ou para os rótulos) das cervejas cuja denominação faz referência a mulheres afro-brasileiras, como por exemplo, a cerveja Cafuza, a cerveja Mulata, a Devassa Negra. Sempre me impressionou o modo como o corpo da mulher negra (mulata, cafuza) aparece ali enredado por um discurso que parte da imagem da escrava doméstica ou da escrava sexual e alcança, hoje, sua exacerbação, principalmente se pensamos na (con) fusão instaurada entre os nomes das cervejas e as mulheres estampadas em seus rótulos: quem é a cafuza, a mulata ou a devassa: as mulheres ou as cervejas? Quais os produtos oferecidos à venda? Quais os produtos a serem consumidos?
O destaque para o turbante e o cabelo crespo em sua textura natural fazem parte das novas dinâmicas da mídia. (Rizemberg Felipe)
JP: O fato de mulheres negras, de cabelos crespos, alisarem os fios pode ser, de alguma forma, negativo para o avanço do pensamento da sociedade?
AB: A questão não é tão simples. Para refletir sobre todos esses discursos que atualmente dizem respeito ao cabelo crespo, seria preciso ter um olhar retroativo, menos preso aos dias atuais. Vejamos: no interior das sociedades africanas ocidentais, os penteados africanos eram sinônimo de linguagem, na medida em que eram usados para indicar a idade, a religião, o estado civil daquelas que o portavam. Não por acaso, os negros passavam por uma raspagem dos cabelos quando trazidos ao Brasil. Certos da necessidade de distanciar os negros escravizados de sua origem cultural, essa raspagem, salvaguardada sob o argumento de necessidades higiênicas, tinha o intuito de minar qualquer sentimento de pertencimento étnico que aqueles povos pudessem carregar a partir da relação com o cabelo. A tradição africana no que diz respeito ao cabelo não se perde, no entanto, com o tráfico, mas renasce.
JP: O que mudou em relação à beleza negra da época da escravidão até hoje? O que não mudou?
AB: Eu teria que analisar a história de cada signo da beleza negra, da escravidão aos dias atuais. Na impossibilidade de fazê-lo aqui, vou me limitar a descrever, ainda que linhas gerais, os três momentos da beleza negra que eu abordo no livro. Nesse sentido, o que posso dizer é que muda o olhar lançado ao corpo negro em cada momento histórico, muda o modo como esse corpo produz sentido. Os séculos escravocratas construíram uma beleza castigada, ligada ao corpo, e bifurcada entre o olhar do negro sobre o negro e o olhar do branco sobre o negro: as escarificações, as marcas tribais, os penteados africanos, o achatamento do nariz e a limagem dos dentes são elementos exaltados apenas pelo olhar do negro sobre o negro. Num sentido inverso, que faz do branco o observador, apenas o seu modelo de beleza figurava enquanto padrão a ser seguido, daí as seleções eugênicas, tão comuns naquele período. No decorrer do século XX, num período pós-abolição, o conceito de beleza pode ser flagrado no interior dos tantos concursos de beleza produzidos pelas associações recreativas e destinadas apenas às mulheres negras. Segundo essas associações, era preciso 'reeducar a raça', subtrair-lhe os estereótipos consagrados num contexto escravocrata: a preguiça, a deseducação, o 'vício da cachaça'. O que entrava em jogo ali era um apelo à moral e aos bons costumes.
Por fim, se pensamos no momento atual, pós políticas afirmativas, os conceitos de beleza negra – tão rarefeitos quanto as identidades 'pós-modernas' – estão respaldados pela história, mas também atravessados pelos discursos da mídia, da moda, do mercado, da política, do consumo, da globalização.
Leia a matéria completa na edição deste domingo (28) do JORNAL DA PARAÍBA.
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